sexta-feira, 7 de maio de 2010

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”... Regresso à terra que margeia a vala, encharcado de insegurança, agora denso de ansiedade e revolta. Os primeiros passos vêm com o impulso dos malditos, dos que desconhecem o alcance de uma frase e de um gesto, porque algo de elementar lhes foi negado.”
Samuel Rawet. (ABAMA)


Estava na sala de espera, atento, aguardando. Pelo vitral do corredor, perdia a dimensão exata do que via. Atento aos que se aproximavam, bem antes que o ruído lhe chegasse aos ouvidos. Magia de passos, mistura de cores, imagens sem formas, que chegavam aos olhos cansados, estragados pela miopia. O tempo queimava na brasa do cigarro, obsessão lenta, diluindo-se nas cinzas. Saiu. Não dava mais para esperar a sessão das dez, pena que já tivesse pago a entrada. Agora o que fazer? Caminhar seria a solução. Gostava de caminhar e a noite convidava para isso.

Sorveu o ar com cheiro de sal... Sentiu o vento leste que vinha do mar. Perdeu-se no espaço das horas. Percorreu ruas e mais ruas, olhou vitrines, tentando esquecer tudo. Queria esquecer... Esquecer, mais não podia. Uma certa lembrança não lhe saia da cabeça. Cada passo que dava ouvia martelar no cérebro a mesma frase, compassada, intrigante. Não queria repetir em voz alta, não queria!

-E se repetisse de que adiantaria? Já havia dito a todos, ninguém acreditava. Passou por louco, mentiroso, pinel mesmo! Entretanto, lá no fundo sabia, tinha certeza! Seria culpado ou não, por ter dado um fim na estória de Chico Asa Baixa?

O relógio da Mesbla marcou duas horas. Bares fechados, ruas quase desertas. No Passeio uma mulher alimentava os gatos e vigiava os mendigos. Medo que eles deixassem os gatos, ”criaturinhas de Deus,” sem comida. O pequeno jornaleiro improvisou a cama com sobra de jornais e papelão. Travestis desfilavam impacientes, de um lado para outro da Cinelândia, sem conseguir convencer ninguém.

Começou a sentir cansaço nas pernas, o sono apertando os olhos. Lembrou Chico Asa Baixa reclamando da vida, contando sua estória. Mentira, pretexto. Importava fosse verdade ou não o que contava? Queria saber de sua vida, recalques, frustrações? Agora compreendia que o grande erro fora confiar em Chico Asa Baixa. Não se arrependia de tê-lo assassinado. Não se arrependia. A lâmina entrando na podridão do corpo, punho cerrado, acompanhando o fluxo do pensamento, a lâmina fria na mão:

-Morre Chico Asa Baixa! Morre Chico Asa Baixa!

Queria livrar-se dessa obsessão. Chico Asa Baixa não era gente, não era. O corpo os urubus rejeitaram, as formigas passaram por longe, não correu sangue de suas feridas. Nunca acreditei nos boatos a respeito de Chico Asa Baixa. Ninguém acredita que o matei. Não há provas para me incriminar. Ninguém notou sua falta e nunca mais falarão seu nome. A lenda que existia a seu respeito desapareceu. Mas sei que o matei. . Vi sua cara, mas parecida a um focinho de porco, transformar-se em cinzas... Ouvi suas últimas palavras. Ainda guardo-as comigo.


Chico Asa Baixa morava num quarto escuro, no fim do corredor da Casa e ninguém quase o via durante o dia. Dormia como bicho. Deitado parecia um verme, em desespero, na angústia existencial. Não se distinguia bem a forma do corpo, um amontoado de ossos vestidos em pele cabeluda, ressaltados pelos defeitos de nascença, que lhe marcaram o corpo. Um dia espreitei pelo buraco da fechadura... Juro que não acreditei. Chico Asa Baixa não era gente. Não era!


Provar que o matei não posso. Às vezes sinto que ainda está vivo, numa outra forma de vida, que não conseguimos ver. Outra forma de vida? Noutra dimensão? Por que os urubus não comeram o corpo? De onde surgiu a lama verde que escorria das feridas? A vida de Chico Asa Baixa sempre foi um mistério. Às vezes penso se há outros seres como ele, vivendo entre nós. Sinto calafrio, só de pensar, da cabeça aos pés. Temo que venham vingar sua morte: a morte de Chico Asa Baixa.

“DESMENTIDA A RENÚNCIA DO PAPA”, dizia a manchete de jornal, ainda quentinho em pilhas perto das bancas.

...Que importava renunciasse ou não o Papa, as notícias do jornal, o fanatismo dos fiéis que queimavam maços e maços de velas em frente à igreja da Lapa? Que importava Maria Gorda, a mais gorda de todas as Marias, dançando às cegas entre os carros, falando à toa, frases sem nexo, ela e seu vestido de bolas brancas, azuis, vermelhas? Não importava.

Chico Asa Baixa me seguia como sombra. O que queria de mim? O quê? Olhos pequenos, observadores, adquiriam sagacidade. Riso sínico dominando a cara pequena, cheia de pêlos. Certa noite sentiu vontade de estrangulá-lo. O ódio crescendo, tomando forma, corpo. Boatos, os boatos de Casa cozendo cartilagens, nervuras. Combustão, lenta, lenta. Chico Asa Baixa não era gente.

Sabia que ia matá-lo. Tudo questão de horas. Sabia e nada fez para impedir. Olhos miúdos falando mais que a boca. Dizendo coisas que não entendia que nunca entenderei. Sorriso cínico, cara miúda, de quem zomba da vida e das coisas da vida. Há noites que ouço a sua voz. Chico Asa Baixa morreu, eu sei. Distingo perfeitamente sua vós entre outras que jamais ouvi. E digo a mim mesmo: Se Chico Asa Baixa está vivo vou matá-lo novamente. A lamina baixará no corpo. No cérebro, a mesma música: Morre Chico Asa Baixa! Morre!

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