Desceu novamente rumo aos Arcos. O vento forte sacudindo a chuva no rosto. O frio, a fome, a umidade ferindo os pés, encharcando os sapatos. Deixou-se molhar sem nenhum protesto, sem constrangimento. Pela primeira vez na vida não tinha pressa, não queria chegar a lugar algum. Nada mais o preocupava, só a paz dos pingos d’água ,cantando em seus ouvidos uma canção que sabia de cor e salteado: “Morre Chico Asa Baixa!” Na esquina alguém gritou de repente:
-Quer morrer atropelado, filho da puta!
Tomado de sobressalto, respirou profundo, sentiu calafrios. O silêncio a resposta. Centelha de ódio fulminando o cérebro, fulminando. Por que não lhe deixavam em paz, por quê? Por que o perseguiam até nos dias de chuva? Sentiu que ia cair. Leve tontura lhe anuviou os olhos. Os pés fincaram no chão molhado tentando resistir à queda.
Quando abriu os olhos ja era manhã, outra manhã. O céu estava cheio de balões, haviam rosas de todas as cores por todos os lados. Crianças, dezenas de crianças, soltando fogos de artifício. Tinha certeza que não eram as crianças da Lapa, magras, sujas, maltrapilhas.
Olhou em volta e deu conta que estava caído dentro de uma poça d’água. Não entendeu o sentido da visão, nem porque os jornais estampavam sua foto na primeira página.
Existiriam motivos para rancores? Lembrou da fome e da hora. Talvez o restaurante do China já estivesse aberto. Lembrou do avô, um velho embarcadiço, que viajara o mundo todo, na Marinha Mercante, que se orgulhava de ter montado a torre da primeira estação de rádio de sua terra natal e que ficou cego, ainda moço, por causa do glaucoma.
O Velho do Mar dizia que era filho de portugueses, e que seu pai castigava os sete filhos, todos de uma só vez , amarrados num coqueiro, só pra ”ninguém zombar um do outro”. E a surra era de “pimba” de boi!
O Velho do Mar não queria que ele fosse morar no Rio. “Aquilo era terra de doido e só se comia frio”. Mas, mesmo assim, foi enfrentar o seu destino. Mandou a transferência da faculdade por Mestre Alcides, um professor amigo, que estava se transferindo para a Guanabara. Em seguida, rumou, num vôo do CAN, para o Rio de Janeiro, com uma mala antiga de papelão e uns cruzeiros no bolso, que um amigo lhe emprestou. Não se esquecia das ultimas palavras que ouvira do Velho do Mar:
- Quando eu morrer quero que derramem um vidro de perfume sobre mim e coloquem uma
rosa vermelha no meu peito! E, em seguida, se despediu do neto. Sabia que não o veria mais nessa vida... Nunca mais, sabia!
Um dia, caminhando pela Lapa, no ruge-ruge da Cinelândia, sentiu um forte cheiro de perfume que lhe invadiu as narinas. Depois um cheiro de rosas tomou conta de tudo. No mesmo dia recebeu um telegrama informando que o Velho do Mar havia morrido, e que um irmão se encarregara de cumprir seus últimos desejos.
-Existiria mesmo vida após a morte como aprendera nos livros de Allan Kardec? O Velho do Mar teria arranjado um modo de lhe dar a noticia de sua “passagem”, na mesma hora? Ou seria paranormal, médium, como diziam os kardecistas? Tanto questionamento fervilhando na cabeça, a Lapa moribunda fritando seus miolos e, ainda por cima de tudo, aquela idéia que não lhe saia da mente: matei Chico Asa Baixa, matei!
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