Ali comiam os humildes, os que não tinham muito para sobreviver, porque de tudo se fazia para não morrer de fome, na velha Lapa. Ele bebia a “sopa de entulho” que Mestre Assis deixava de lado.
Sopa gostosa, cheia de repolho, batatas, cenouras cortadas em pedaços grandes, bem cozidos, quase esfarelando; nabos e feijão branco, um aqui outro acolá. Mestre Assis não gostava da sopa. Dizia lhe encher de “gases”, mas ele devorava tudo : a do Mestre Assis e a do Mestre Louza, com a maior “cara-de-pau”. Eles diziam, para lhe gozar, “que ele tinha fome atávica”...
Lembrava do tempo em que abandonara a Lapa para morar em Santa Tereza, na casa de Mestre Louza, no começo de tudo. Repartia o sótão com João, outro afilhado do Mestre , a quem se afeiçoou bastante, como a um irmão, naqueles anos de solidão. Momentaneamente, esquecera o ódio que tinha por Chico Asa Baixa, a Casa cheirando a mofo, os quartos empilhados de argentinos, chilenos, paulistas e nordestinos do Piauí, Ceará e Maranhão.
Pensou no dia que chegara ali, depois de dois dias viajando, penando, num velho D45, caindo aos pedaços, que fizera escalas no Recife e Brasília, antes de pousar no Rio. Da pia do avião, para ele cheia de água, mas que na verdade, era só de urina. Do sorriso afetuoso do Mestre Alcides, um “vara-pau”, magro, comprido mesmo, cheio de medos, superstições, de poesias na cabeça, planos de romances e que lhe deu pousada provisória, a despeito da má vontade de Filó, sua mulher...
Da primeira noite em que dormiu num “cortiço”, com outro companheiro do destino: João Divino, num quartinho tão pequeno que não caberia quatro pessoas... Mas ali dormiram dez, espalhados em beliches e, em colchões pelo chão, no espaço que sobrava entre cada uma das camas.
- Outro dia!
Disse quando o sol raiou entre as brumas frias, naquela primeira manhã, depois que chegara ao Rio. Esgueirando-se por ruelas da velha Lapa, chegou com João Divino à Casa dos Estudantes, na Rua Visconde de Maranguape, procurando outro nordestino que ali morava, de nome Olavo.
Da porta víamos a imponência dos Arcos, um dos cartões postais da Lapa e os primeiros mendigos lhe chamaram a atenção. Nunca tinha visto tanto mendigo assim reunido, no mesmo lugar. Tanto carro, tanta gente, que mais lembrava manadas de boi no sertão.
-Olavo sou eu! Disse, com a voz “afetada”, com trejeitos femininos, o nordestino que procuravam. E, em seguida:
- Mais dois “calipijas” que vem do Nordeste, da terra seca dos mandacarus, para sofrer no Rio!
Não sei se tinha nos jogado uma praga, mas muito do que disse se concretizou. Mas, nem tudo foi dor naqueles dias, enquanto houve esperança. Sonhos que se concretizam ou não, estavam traçados no destino cármico de cada um, só para falar numa linguagem cardecista.
Nessa época ainda não conhecia Chico Asa Baixa, suas mentiras e auto-afirmações. Nem o cheio fedido do seu quarto, escuro, sujo mesmo, envolto em lençóis que foram brancos e que há muito tinham perdido a cor, pois nunca foram lavados. Ali ele passava quase o dia inteiro dormindo. Só acordava altas horas da noite. Fumava um cigarro atrás do outro e descia para comer alguma coisa na leiteria Bol.
Diziam que da faculdade tinha sido “jubilado”. Verdade ou não, ninguém acreditava em suas intenções “políticas” e, desconfiávamos que fosse mesmo, o marxista que dizia ser, dormindo daquele jeito. Corria um “zum-zum-zum”, nos quartos e corredores, que ele era do “Dops” e que se mantinha na Casa, por ser “alcagüete”. Ganhava para dormir o dia inteiro, e ainda “dedava” os colegas em troca de trinta moedas? Judas, Judas, sim, esse Chico Asa Baixai!
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