sexta-feira, 7 de maio de 2010

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Continuou descendo a Visconde de Maranguape, o palco principal da Lapa moribunda. Dali dava para ver a Rua dos Arcos, o bondinho rumando para Santa Tereza. As ruelas que no passado abrigaram intelectuais, artistas famosos como Carmem Miranda e escritores como Machado de Assis, Manoel Bandeira, e que viu nascer o temido “Madame Satã”, agora a nossa morada: covil de loucos desprovidos da sorte, mendigos decadentes.

A Casa do Estudante, a melhor referência, a pérola incrustada no lodo vital: do outro lado, por trás da Casa, a Escola Nacional de Música. À noite, dava pra ouvir os estudantes afinando os instrumentos musicais. Em frente, o Passeio Publico, a concentração de mendigos e outros desocupados. Ao lado, a Cinelândia, paraíso dos “entendidos”, michês, garotos de programa, prostitutas, empresários, artistas e intelectuais. Lugar de chope gelado, cervejinha e papos políticos ou descompromissados, palco de guerra de idéias e conflitos morais, até altas horas da madrugada.

Da Casa, pelo vitral que os separava da rua, sempre via passar um escritor jovem e já famoso: Mestre Silva. Alto, magérrimo, elegante, lenço de seda no pescoço, cabelo Black Power, impecável. Óculos escuros, cubando a noite e quem desfilava na noite, por cima das lentes, de modo altivo. Leve pisar, andar cadenciado, abraçado aos livros que pressionava junto ao peito, descendo a Visconde de Maranguape. Parecia um “louva-a-deus” a desfilar.

Todos conviviam com aquela realidade cruel, a vida se desenrolando como num teatro, com personagens reais. Prostitutas, travestis, viciados, bêbados e malandros de toda espécie, dividiam conosco o mesmo ar de indignação e perplexidade.

Uma viatura da policia, de cor preta, para em frente à Casa. Todos atentos, alerta geral! Mas os policiais vão pender ,do outro lado da rua, travestis que brigavam com giletes nas mãos.

Mestre Assis conhecia bem a Lapa e Mestre Silva. Dizia que ele tinha “um belo texto ,que tinha futuro mesmo... e que ousou, bastante novo, com apenas um livro publicado, pleitear uma vaga na Academia Brasileira de Letras”.

Claro que não o deixaram entrar. A Casa de Machado de Assis mantinha outras tradições, naquela época, além das do chá nos finais da tarde. Nos anos, 60 e 70, via de regra, preenchia as“cadeiras” vagas, com figuraços, políticos, milicos, alguns sem nenhuma obra importante publicada.

"Lá entrava quem tivesse prestígio ou padrinhos poderosos nos grupos de conchavos". Mestre Assis - crítico mordaz e escritor várias vezes premiado, lutou muito para cair nas graças de alguns “imortais”. Lá esteve por muitos anos, “queimado”, por suas idéias legítimas e por uma critica autêntica, em defesa da verdadeira Literatura Brasileira. Naquela época era do conhecimento publico os escritores de “orelhas de Livro”, de obras menores e inexpressíveis, que vestiam o famoso fardão e se misturavam aos figurões das Letras...

E o que tudo isso tinha a ver com Chico Asa Baixa, pensou com os seus botões? Nada. Nada mesmo! Chico Asa Baixa morreu, eu o matei mesmo! Chico Asa Baixa a idéia fixa que não saia da cabeça, não fosse às lembranças dos tempos felizes, em que largara temporariamente a Lapa, para viajar pelo país, como repórter do Jornal do Escritor.

Agora, não bastasse os loucos que o rodeavam, aquela idéia fixa não o deixava em paz. Tinha que matar Chico Asa Baixa. No mundo não havia lugar para os dois. Mas não sabia que a vida se transformaria num inferno, depois da morte de Chico Asa Baixa. O próprio casarão não seria mais o mesmo. Assumiria dimensões fantasmagóricas. Coisas estranhas iriam acontecer!

Numa noite acordou com forte cheiro de fumaça invadindo o quarto. Deu um salto da cama, abriu à veneziana. O corredor era só fumaça negra. O cheiro de querosene sufocava e vultos estranhos, desconhecidos, dançavam nas labaredas, já na altura do teto.

-Água não! Água não! Água não! - gritou.

Eles sorriam, atiravam baldes d’água nas chamas, que aumentavam na direção do quarto. A “Casa” toda gritava. Lamentos, mais lamentos. Olavo, que morava no andar de baixo, tentava salvar as “jóias e os diplomas”.

-Salvem minhas jóias, meus anéis, meus diplomas, gritava em pânico!

No andar de cima, Carlos, maranhense descendente de negros Zulus, queria pular para o térreo. Se pulasse quebraria as pernas. Não pula Carlos, não pula, gritou alguem e em seguida: “chamem os bombeiros”. Outro, no quarto andar berrava: “fogo, fogo”!

-Sabem quem vi entre, as chamas, sorrindo para mim. Não precisava dizer. Não precisava!

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