- Chico Asa Baixa tomara a forma de labaredas rubras, amarelas. O suor tomando conta do corpo. A Casa transformara-se numa fogueira. O calor insuportável, mesmo a distancia.Os ratos, em gritaria refugiavam-se nos sapatos, sob as camas. Seria a vingança de Chico Asa Baixa? A vingança que já esperava?
Da janela viu Olavo, o "homem" das jóias e dos diplomas. Vestia uma "calcinha",
vermelha e estava caído no seu quarto, no segundo andar.: havia desmaiado de pavor! Os anéis, de varias formaturas, agarrados junto ao peito. As jóias, miçangas imitando rubis, esmeraldas, usadas em adereços de fantasias do carnaval , agora brilhavam inutilmente. Os diplomas conseguira salvar intactos.
Carlos, o maranhense, negro retinto, dentes brancos como neve, tinha mudado de cor. Ficou com a tez amarelada pelo medo. E na medida que o susto passava, foi ficando cinza, salpicado de fuligem. Já se ouvia a sirene dos Bombeiros e fogo continuava queimando tudo perto da escada.
Encheu-se de coragem, motivado por estranha força. Tomou o rumo das labaredas sem medo, envolto num lençol molhado. Viu que o incêndio vinha da lixeira que estava cheia, transbordando para a escada. E o cheiro de querosene? “Aquilo era coisa da direita”, dos que queriam desocupar a Casa na marra, diziam uns. Fazia sentido, fazia sentido sim, embora ninguém pudesse provar.
Logo os Bombeiros chegaram e o fogo foi apagado. A Casa não tinha extintores e a sujeira tomava conta de tudo. Durante o resto da noite o fumaceiro tomou conta da Lapa. Uma só fagulha, daquelas que subiam para o céu, poderia condenar a Lapa imediatamente. Os velhos casarões não suportariam a ação devastadora do fogo. E se não fosse uma noite de junho, ninguém diria que a Lapa esteve tão perto de ser também, Sodoma ou Gomorra.
Jamais esqueceria aquela noite sem fim. O fogo é mesmo um agente avassalador, tudo destrói, pensou. Dizem que é o mais divino dos quatro elementos, porque até mesmo Deus teria se apresentado a Moisés, na forma de uma sarça ardente. O fogo, elemento purificador. Naquela noite queimou pecados, limpou a sujeira, e deu um alerta geral a Lapa moribunda. E Chico Asa Baixa? Melhor que ficasse ali, queimando com as labaredas... No outro dia, seria só um monte de cinzas.
Odiava mesmo Chico Asa Baixa com toda força da alma. Inútil tentar esquecê-lo. Pela manhã, bem cedo, desceu para a rua, o caminho de todos os dias. Contemplou as ruínas da Lapa, telhados coloniais, formas renascentistas, barrocas, os velhos casarões. Olhou para o alto contemplando as ruínas. Uma inscrição enegrecida pelo tempo dizia: Fundada em 1803. Adiante num letreiro de neon, lia-se: “Cabaré Primor”, sem o “r” ,que com o tempo levou. Do outro lado da rua, travestis disputavam com Marli Sujinha o direito de conquistar fregueses, ou melhor, os trocados que lhes davam por carícias, beijos, afagos. Um vagabundo, tão vagabundo quanto ele, foi levado pela polícia. O homenzinho "berrava como um cabrito desmamado". Protestava contra a prisão. Chamava pelo dono de um bar. Ficaram na mente suas últimas palavras:
-Eles me pegaram, vão me levar!
A porta traseira da viatura foi aberta. Guardou a imagem dos dois homenzarrões e dos chutes que deram na bunda do homem. O impulso de um corpo caindo na pequena cela, fez lembrar-lo dos condenados, sem eira nem beira, presos políticos, diante das arbitrariedades do poder. Adiantaria falar, ou tentar esquecer? E se eles soubessem que matou Chico Asa Baixa, e que ninguém acreditava?
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