Amanhece. Os urubus aproveitam as correntes frias da manhã para fazer círculos sobre a Lapa. Dezenas deles acenando com mãos negras, dizendo adeus ao tempo, passado que vivíamos, naquela manhã úmida, fria. Desceu rumo aos Arcos. Hora de tomar um café forte, misturado com pinga . E , assim, perdeu-se nas divagações de uma manhã já cheia de sol. Sentiu o frio seco do inverno que fazia arder as narinas. Sentiu falta de calor humano.
Um guarda de trânsito soou o apito estridente ferindo ouvidos. O tempo voa, já são nove horas. Os engarrafamentos enormes, a cidade começara seu dia. Olha em volta e vê os velhos casarões, amarelos, vermelhos, verdes, caindo aos pedaços. Paulista atravessa a rua e vai acariciar Quincas na calçada de uma casa de ferragens. Beijos, abraços são trocados. Gestos que se perdem no começo da manhã e que provam uma velha tese de Chico Asa Baixa:
-O ser humano vive a procura de amor!
Sujos, maltrapilhos, corroídos pela bebida e desilusões da vida, se entregam ,mutuamente, em afetos que são mais instintos do que outra coisa - pensou. Para que chorar saudades, pra quê? A Lapa estava morta ou quase morta. Chico Asa Baixa também, eu o matei. Matei!
Pensou: quando soar a última hora aonde irá essa gente? O que será feito da Paulista que chegou ao Rio mocinha, cheia de esperanças e que se corrompeu na Lapa, em boates e cabarés. Que tinha o corpo lindo, como "costumava dizer", e que fazia strip-tease nos cabarés da Praça Mauá? E cabo Jonas, Joana Doida, Maria Gorda e Marli Sujinha, esta que jurava que foi "miss", lá para as bandas de Caratinga, Minas Gerais? E Chico Asa Baixa? Chico Asa Baixa estava morto. Bem morto mesmo!
Que seria feito das crianças da Lapa, magras, esqueléticas, sujas e famintas, que não fariam inveja as crianças famintas de Biafra? Para onde iriam os ratos que dividiam com eles o privilégio das cabeças-de-porco? E os vagabundos, mendigos e os travestis? A Lapa estava morta sabia.Para que pensar em coisas, em pessoas que logo não mais existeriam? O cheiro do cigarro tomou conta do ar ferindo o nariz. Todos sabiam que a nicotina matava, causava câncer, mas naquela manhã fria de julho, com uma garoa fina molhando a pele, um cigarro era uma fogueira a aquecer os pulmões.
A temperatura mudara de uma hora para outra e , a garoa transformou-se em uma chuva fina molhando os ossos. Doía lá dentro, no estômago vazio. Só não molhava as recordações que brotavam, em turbilhões , lá dentro da cabeça: Chico Asa Baixa morreu eu sei, mesmo que ninguém acreditasse na sua morte.
Entrou na leiteria Bol para pedir um pingado. Também, o dinheiro que tinha mal dava para isso. Olhou para a Casa e viu que os primeiros estudantes já começavam a voltar das aulas. A Visconde de Maranguape estava sombria e um nevoeiro tênue encobria parcialmente o Aqueduto de Santa Tereza.
Parou numa banca de jornal, olhou as manchetes. Mãos frias dentro dos bolsos e o estômago doendo, doendo de fome. Em qual restaurante iria almoçar, pensou? Poderia ir ao restaurante do China, ou do Turco, comer um “sortido” , ou então esperar o Zé do Angu á baiana, que só chegava la´prás 7 horas da noite.
A boca encheu-se d’água e pensou: muito bom, muito bom mesmo! Poderia esperar, dava pra esperar! Aquele angú de milho bem cozido, regado com molho grosso, cheio de pedaços de bofe, cortadinhos em pedaços miúdos e outras fissuras bovinas. Matavaria a fome e, com aquela pimentinha malagueta, aqueceria o estômago e o coração.
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